segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Letícia Parente – Arqueologia do cotidiano: objetos de uso


Letícia Parente utiliza o próprio corpo como instrumento
de arte / Foto: Divulgação


Um vídeo de um armário que se enche e se esvazia de objetos do cotidiano; outro, de uma mulher se pendurando em um cabide e se colocando no armário. No terceiro, a personagem é passada com um ferro de passar como se fosse uma roupa amassada. No próximo, ela cola esparadrapos na boca e nos olhos e se maquia. Ao lado, um outro vídeo mostra uma pessoa costurando, vagarosamente, na sola do próprio pé: “Made in Brasil”. E, no último, uma pessoa se autoinjeta vacinas antiracismo, anticolonialismo cultural, antimistificação da arte e antimistificação política.

Sob o plano de fundo dessas imagens, uma voz masculina repete, incessantemente, o poema “eu armário de mim, eu armário”.

A exposição de Letícia Parente “Arqueologia do cotidiano: objetos de uso”, sediada no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), deixa os espectadores angustiados, confusos e, até mesmo, aversivos.

Ao entrar no casarão escuro do museu, a voz melancólica que narra o poema da artista invade a sua mente de tal forma, que não se pode pensar em mais nada. Enquanto isso, os seis vídeos, dispostos lado a lado, iluminam os rostos confusos do público que tenta fazer qualquer relação entre o nome da exposição e o que se é mostrado.

Aos poucos, percebe-se que a cobaia de todas as ações é a própria artista que, por ter sido química, decidiu transformar-se em laboratório. Dessa forma, se configura no objeto que se coloca no armário e o poema faz, finalmente, sentido.

Entretanto, é tão somente após a leitura do folder sobre a vida e obra de Letícia Parente que a relação entre o contexto histórico e a sua criação visual tem coerência.


A maioria dos vídeos foram feitos durante o regime militar
brasileiro / Foto: Divulgação

Letícia é referência no mundo artístico pelo pioneirismo e pela forma de utilizar os chamados videoarte e se destaca no cinema pelo trabalho audiovisual, os quais, produzidos majoritariamente nos anos 70, têm uma linha política densa que abordam a função da mulher na sociedade machista e ditatorial.

Desse modo, ela é um objeto de uso do cotidiano que pode ser colocado ou tirado do armário quando o homem bem entender. Moldada com o ferro para adequar-se aos padrões de mulher perfeita, apesar de ciente das atrocidades que ocorrem no país dos governos Médici e Geisel, prefere vedar os olhos e calar a própria voz para, vazia, seguir a ditadura da beleza.

Por perceber que o Brasil está vivendo um período de extrema intolerância, com censura à imprensa e repressões violentas contra a oposição, Letícia se autovacina contra o racismo, o colonialismo cultural, a mistificação da arte e da política.

De acordo com o curador (e filho da artista já falecida), André Parente, “a obra de Letícia é política por problematizar a relação entre o corpo e a obra, a obra e a arte, a arte e a política”. “E o que há de particular em cada trabalho é que a artista trata destas questões ao mesmo tempo”, completou.

A obra mais famosa, “Marca Registrada”, é a costura que faz na sola do pé com os dizeres “Made in Brasil”.


A obra mais famosa da artista foi “Marca Registrada”
/ Foto: Divulgação

Ainda que a ideia seja, ou fosse (já que os “experimentos” foram feitos nos anos 70) revolucionária, não é nada agradável vê-la enfiar uma agulha ou uma seringa no seu corpo – o que faz com que o público queira sair da sala dos vídeos o mais rápido que puder.

Além disso, só é possível notar a importância da obra após um suporte histórico ou com a ajuda de um guia. Se o expectador não tiver essa base, se não for perito em arte ou se for apenas alguém que decidiu ver qual é a novidade no MAM, a exposição não se completa por si só e não passa nada mais do que angústia.

Na capela do Solar do Unhão, a mostra continua com fotografias de mãos, pés, mãos e pés, mãos e joelhos, mãos e ombros e um vídeo com o mesmo conteúdo. Novamente, é necessário recorrer ao folder para entender que aquelas fotos são posições de preces em diversas religiões.
Os videoartes e as fotografias, todavia, não parecem se completar e, mais uma vez, a obra confunde o público.

O que fica marcado, de fato, é uma vontade imensa de sair do local o mais rápido possível para apagar da mente aquelas imagens perturbadoras.